Multiculturalismo e a relação entre imigrantes, suas identidades e a sociedade em que se estabeleceram

A queda do Muro de Berlim no século XX transformou o mundo num sistema multipolarizado e globalizado. O planeta se tornou mais interligado econômica e politicamente e isso favoreceu o deslocamento das pessoas no globo de maneira desordenada e imprevista. O resultado, segundo Clifford Geertz (2001), é que novas linhas são traçadas, identidades expandem, mudam de forma, ramificam-se e desenvolvem-se, o que ocasionou choques entre os grupos. Dentro desse panorama, foi preciso pensar numa nova forma de política, forma essa que, precisava pensar na religião, raça, língua ou afirmação étnica de forma racional, sem suprimir, demonizar e assim acabar com o abuso de poder. Para Geertz (2001), é preciso obter uma melhor compreensão sobre cultura e a estrutura como as pessoas vivem no mundo, a partir das suas individualidades, estilos e diferenças.

Assim, as sociedades modernas começaram a fragmentar elementos culturais, como por exemplo, classe, gênero, sexualidade, raça e nacionalidade. Essas mudanças interferiram na nossa identidade pessoal e abalaram a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados.

Para começar, cultura não é transmitida por genes, ela não é uma questão de raça. Existem muito mais culturas humanas do que raças humanas”, afirma Claude Lévi-Strauss no texto Raça e História (1952). Para o autor Adam Kuper (2002), a cultura é uma questão de valores, cosmologia, estética e os princípios morais são expressados através de símbolos, sendo a cultura um sistema simbólico.

Culturas elaboradas por pessoas de uma mesma raça podem divergir tanto quanto culturas de grupos racialmente afastados. A diversidade nasce, segundo Lévi-Strauss (1952), a partir do contato com culturas diferentes, portanto, não se estabelece a partir do isolamento entre povos. Muitos costumes desenvolvidos por uma população tiveram origem não apenas de uma necessidade interna, mas sim de uma vontade de não serem atrasados em relação a um grupo vizinho, que possuía uma tecnologia diferente e mais avançada para conseguir algo para aquela sociedade.

No entanto, é preciso saber que a diversidade cultural pouquíssimas vezes pareceu algo natural, resultante das relações, sejam elas diretas ou indiretas, entre as sociedades. Lévi-Strauss (1952) ainda corrobora que, a diversidade cultural é vista como monstruosidade ou escândalo desde a Antiguidade. Afinal, “o que faz uma nação é o passado, o que justifica uma nação em oposição a outra é o passado”, como já escreveu Eric Hobsbawm (2000, p.271).

Adam Kuper utiliza uma citação de David Chaney (1994, p. 208) para dizer que a cultura representa uma ponte entre o indivíduo, suas identidades e a sociedade. Já James Clifford é usado para afirmar que a cultura serve para fazer diferença e por isso é preciso preservar “as funções diferenciais e relativistas do conceito”.

Existem hoje teorias modernas sobre cultura, na qual reciclam as anteriores. Para entender cultura é preciso desconstruí-la e explorar suas configurações, na qual elementos como língua, técnicas, ideologias e rituais estão relacionados entre si.

Explicando as operações que contém uma cultura, Michel de Certeau (1994) expõe pensamentos sobre relatos cotidianos e disserta sobre a noção de espaço. Para ele, os relatos transformam lugares em espaços e vice-versa e organizam as relações entre os indivíduos. Para que um lugar possa se tornar um espaço, é necessário que o indivíduo exerça dinâmicas de movimentos através do uso. É preciso que o lugar seja ocupado para ser transformado.

Segundo Hector Díaz-Polanco em Diez teis sobre identidad y globalización (2009), os idealistas da globalização prometeram não só um mundo igualitário socioeconomicamente, mas que se iniciaria uma era de grandes transformações no que se refere à igualdade entre classes e grupos nacionais. Porém, não imaginaram que o processo se daria de forma contrária.

Dentro disso, para explicar alguns processos da globalização, será utilizado o texto do Boaventura de Sousa Santos, Para uma concepção Intercultural dos Direitos Humanos, do livro chamado A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política (2006). Souza Santos conceitua “localismo globalizado” como um processo pelo qual um fenômeno é globalizado com sucesso. Há também o “globalismo localizado” que pode envolver eliminação de comércio tradicional ou mesmo a criação de enclaves de comércio.

Para Stuart Hall (2011, p. 3-4), a globalização tem impacto na identidade cultural dos indivíduos. Assim, as sociedades modernas estão em constante mudança. A sociedade não é unificada e bem delimitada. Ela se produz através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma.

Sousa Santos (2006) acredita que exista uma relatividade cultural, na qual se definiu como valores universais considerados fundamentais para a sociedade. Dessa maneira tudo é olhado do ponto de vista Ocidental, a questão sobre universalidade é baseada em uma dada cultura, olhada de um único ponto de vista.

Os movimentos anti-colonialistas sucedidos pela Segunda Guerra Mundial tiveram consequências na formação das minorias étnicas no Estado-nação moderno. Antes disso, existia um paradigma assimilacionista, que ansiava para que os imigrantes ingressassem de forma gradual e rápida na sociedade receptora.

De acordo com Hans Vermeulen, no livro Imigração, Integração e a Dimensão Política da Cultura (2001, p. 14), o conceito de assimilação é “um processo gradual, a-problemático e linear – alguns falam mesmo de teoria ‘linear’ (Gans, 1979) – pelo qual uma minoria étnica assimila a cultura da sociedade que a acolhe e, assim, deixa de existir enquanto minoria”. Essa perspectiva desenvolveu-se principalmente em Estados modernos como Estados Unidos e Austrália, países que devem sua formação aos imigrantes. Pensada para se apresentar como um processo natural de modernização, a assimilação subtende que a sociedade é acolhedora e aberta, se impondo pouco aos imigrantes.

Hobsbawm afirma sobre os norte-americanos:

Em certo sentido, o que se defende é a ideia do “nós” como um corpo de pessoas unidas por um número incontrolável de coisas que “temos” em comum – um “estilo de vida”, no sentido mais amplo, um território comum de existência em que vivemos, e cuja paisagem nos é familiar e reconhecível. É a existência disso que fica com a entrada do que vem de fora. (HOBSBAWM, 2000, p. 280).

Após a Guerra, esse conceito perdeu a credibilidade entre as minorias, sejam elas: negros, que viam o processo como um sistema de colonização interno, ou judeus, que acreditavam que o processo não salvou seu povo do racismo e genocídio. Dessa maneira, era preciso rever o conceito de assimilação. 

O termo se estabelece através da relação entre minoria e maioria, que pode ser mais latente quando supostamente a cultura da maioria é adotada e incorporada pela minoria, processo denominado de aculturação. Este conceito, que muitos acreditam ter caído em desuso, é ultrapassado, já que não é possível ter uma cultura e depois outra.

Na relação entre a sociedade e os migrantes, antes de ascenderem socialmente estes devem incorporar a cultura moderna da maioria, a sociedade não tem interesse ou muito dificilmente terá interesse em adaptar esses imigrantes. Diante disso, alguns migrantes se integram na sociedade ‘acolhedora’, mas outros se tornam minorias, muito por conta dos seus laços étnicos não desaparecem, mesmo com o tempo e esforço da maioria. Assim, os laços são mais fortes do que a cultura imposta pelos países receptores.

Vem à tona, como resultado dessa relação, os preconceitos e discriminação por parte de certos indivíduos. A sociedade moderna não presta atenção às diferenças entre os grupos, nem mesmo como esses grupos foram incorporados nessa nova sociedade. Assim, há uma posição chamada de étnico-cultural, na qual um determinado grupo é visto como separado, a margem de outros grupos da sociedade. O conflito, ocasionado pelo processo de assimilação, fez com que se evitasse o uso do termo assimilação, assim, a política preferiu utilizar os termos integração e multiculturalismo.

Segundo Díaz-Polanco (2009), o império é uma máquina de integração universal, que com sua boca aberta e apetite infinito, convida a todos, pacificamente, a ingressar em sua cultura. O império não busca excluir as diferenças, ele incita os outros a penetrar em sua ordem. Conceituando o termo etnofágico, Díaz-Polanco (2009) afirma que o império tem um apetite de diversidade e quer digerir e assimilar o comunitário, além de engolir e devorar o “outro” e suas identidades étnicas.

Para Kuper (2002), o multiculturalismo é a retomada da cultura de caráter político, citando Terence Turner, ele afirma que o multiculturalismo é um o movimento para mudança, mas faz críticas. O autor afirma que o termo não se trata de um movimento social coeso. O multiculturalismo americano dissemina discursos para o fortalecimento das minorias e rejeita a ideia de que os imigrantes devam assimilar a cultura que predomina, além de negar que exista uma cultura predominante. Segundo Kuper (2002), a questão não é a existência de diferenças, mas sim o desprezo e preconceito com que muitos tratam essas diferenças. A cultura predominante – que consiste no branco de classe média, anglo-saxão, homem e heterossexual – impõe suas regras a sociedade, quem não se encaixa nesse padrão será estigmatizado por ser diferente.

Segundo os autores Akhil Gupta e James Ferguson:
O "multiculturalismo" é, ao mesmo tempo, um débil reconhecimento do fato de que as culturas perderam suas amarras e lugares definidos, e uma tentativa de substituir essa pluralidade de culturas na moldura de uma identidade nacional. Da mesma forma, a ideia de "subcultura" tenta preservar a ideia de "culturas" distintas, ao mesmo tempo em que reconhece a relação de diferentes culturas com uma cultura dominante dentro do mesmo espaço geográfico e territorial. (GUPTA e FERGUSON, p. 33, ).

As políticas multiculturalistas são ditadas pela identidade cultural, conceito ligado ao indivíduo, que possui um eu verdadeiro, eventualmente não correspondente à pessoa que ele parece ser. O indivíduo pode escolher ou mesmo ser forçado a disfarçar características de seu verdadeiro eu. Contudo, para Kuper (2002), identidade não é somente algo pessoal, ela precisa ser dividida no mundo e dialogar com os outros. O eu interior está unido a uma coletividade, seja uma nação, classe social, movimento 
político ou até uma minoria. Para que uma pessoa seja livre na esfera social que se encontra, seus valores precisam ser respeitados. Pensando assim, numa comunidade multicultural, as diferenças devem ser respeitadas e até mesmo estimuladas.

Os indivíduos se organizam em grupos e tem diversas identidades, que podem se basear em atributos como o sexo, a classe, profissão, etc. A identidade étnica se diferencia da identidade social pela herança cultural, como por exemplo, língua e religião. Além disso, em uma comunidade étnica existem diferentes maneiras de pensar o ser turco, negro ou chinês.

Mencionado no texto de Kuper (2002), Charles Taylor, define identidade em termos culturais e acredita que quando é estabelecida uma identidade cultural existe uma pressão para se viver de acordo com ela, mesmo que se abandone a própria individualidade. Já para outro autor, K. Anthony Appiah, existe um custo por se definir uma identidade cultural, pois, o indivíduo pode não estar disposto a seguir uma linha de partido ou aceitar um papel estereotipado. Quando um imigrante defende sua identidade e se estabelece em um país diferente do seu, a sociedade espera que suas características correspondam a expectativas rígidas sobre como ele deve se comportar. Há, portanto, 
maneiras preestabelecidas de ser, exigências a serem cumpridas.

A identidade é algo formado ao longo do tempo e não algo inato, já que é feita de processos inconscientes. Dessa forma, ela está sempre incompleta e sempre está sendo formada. Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento.

Para Díaz-Polanco (2009), existem identidades que aceitam o sistema, mas há outras que são capazes de resistir com certo êxito à individualização pós-moderna e podem elaborar alternativas de emancipação frente o sistema neoliberal. Os ingredientes que alimentam os projetos de rebeldia e a emancipação, e no amplo arco do “altermundismo”, em sua maioria, se inspiram na luta identitária.

Há muitos significados entrelaçados sobre multiculturalismo, dados pela própria polissemia da palavra. O principal significado se dá pela diversidade sociocultural e suas hibridações. É usado também para se referir as lutas por diversidade e propostas alternativas dos que lutam. Contudo, o seu real caráter é quando se dá um enfoque político, que contém uma concepção sobre a diversidade e como ela deve ser incorporada ao sistema de dominação. Consequentemente, é recomendado um conjunto de práticas e “políticas públicas” que devem ser adotadas a respeito das identidades, principalmente referente à neutralidade do Estado combinada com as “ações afirmativas” e as “discriminações positivas”.

Os conflitos descritos poderiam ser associados apenas a sociedades ocidentais modernas, mas para Kuper (2002), isso é um problema sério. Com as minorias, que tendem a ser mais afetadas por discriminação racial ou religiosa, é mais natural que reivindiquem o direito de ser diferente, mas para o autor, é mais sensato exigir um tratamento igual e semelhante aos membros da sociedade.

É preciso diálogo para lidar com os conflitos entre as relações. É complicado pensar em diálogo intercultural quando uma das culturas foi desenvolvida a partir de agressões à dignidade humana em nome da outra cultura ou mesmo encontros que levaram à extinção cultural. Diante de tantas diferenças, resta a dúvida sobre a justiça em tratar todas as culturas de forma igual ou ainda abrir espaço na cultura ocidental para novos elementos de culturas não-ocidentais. Para Souza Santos (2006) só é possível duas respostas para esses questionamentos: o fechamento cultural ou a conquista
cultural.

Sousa Santos completa (2006, p. 459):
O dilema da completude cultural pode ser assim formulado: se uma cultura se considera inabalavelmente completa não tem nenhum interesse em envolver-se em diálogos interculturais; se, pelo contrário, admite, como hipótese, a incompletude que outras culturas lhe atribuem e aceita o diálogo, perde confiança cultural, torna-se vulnerável e corre o risco de ser objeto de conquista. Por definição, não há saídas fáceis para este dilema mas também não penso que ele seja insuperável. Tendo em mente que o fechamento cultural é uma estratégia auto-destrutiva, não vejo outra saída senão elevar as exigências do diálogo intercultural te um nível suficientemente alto para minimizar a possibilidade de conquista cultural, mas não tão alto que destrua a própria possibilidade do diálogo (caso em que se revertera ao fechamento cultural e, a partir dele, à conquista cultural).

A identidade cultural não pode fornecer uma orientação para a vida, pois temos múltiplas identidades. Supondo que tenhamos uma identidade primária, muitos não querem se ajustar apenas a ela. É preciso questionar o mundo em que nos encontramos e assim dar margem para manobrar os diversos conflitos que virão. A cultura precisa nos estimular a nos comunicarmos através das fronteiras, sejam elas étnicas, nacionais ou religiosas.






Bibliografia

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GEERTZ, Clifford. “O mundo em pedaços: cultura e política no fim do século” In: Novaluz sobre a antropologia. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 2001.

GUPTA, Akhil e FERGUSON, James. Mais além da “cultura”: espaço, identidade e política da diferença. In: ARANTES, Antônio A. (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. (p. 31-49)

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. (Cap. 1 e 2: A identidade em questão e O nascimento e morte do sujeito moderno - p. 1-46)

HOBSBAWM, Eric J. “Etnia e nacionalismo na Europa de hoje” In:Balakrishnan, G (org.) – Um mapa da questão nacional. Contraponto Editora, Rio de Janeiro, 2000.

LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e história” [1952]. In: Lévi-Strauss, Claude. Antropologia Estrutural II. Trad. Chaim Samuel Katz. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976 [orig. francês 1973], pp. 328-66

KUPER, Adam. Cultura, diferença e identidade In: Cultura: A visão dos antropólogos. EDUSC, 2002

SOUZA SANTOS, Boaventura de. Para uma Concepção Intercultural dos Direitos Humanos In A Gramática do Tempo. São Paulo: Cortez Editora, 2006

VERMEULEN, Hans. “Estados-nação e imigrantes: perspectivas teóricas” e “Imigração, integração e a dimensão política da cultura” In: Imigração, Integração e a Dimensão Política da Cultura. Lisboa, Edições Colibri, 2001

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